A Falta de Heresia em Relações Públicas
Waldyr Gutierrez Fortes
07/01/2021
Heresia, de acordo com diversas fontes,
é um conjunto de idéias, opiniões, ou
práticas com as quais desvia-se daquele
corpo aceito de convicções, costumes e
práticas em um empreendimento
organizado.
Embora o termo seja usualmente aplicado
em matérias de crença ou moral, como a
religião, é apropriado onde quer que a
educação, costumes ou "práticas-certas"
ditarem as reações de uma maioria ou de
todos os profissionais de uma área, como
acontece na Ciência. Mais claramente,
falar sobre heresia requer dois
componentes lógicos: um corpo aceitável
de costumes, crenças e práticas,
endossadas pela maioria dos praticantes
de uma área ou profissão, e um conjunto
de propostas desviadas, não
tradicionais, ou idéias e práticas não
aceitas.
É nosso ponto de vista que as Relações
Públicas, tanto no seu pensamento
teórico quanto na sua prática
profissional, têm uma grande subjugação
das primeiras condições, tidas como
lógicas, e uma carência da segunda. Há
um volume insuficiente de heresia no
pensamento de Relações Públicas, um
número insuficiente de práticas
alternativas, pensamentos e crenças.
A proposta é sugerir algumas idéias
potencialmente heréticas e, ao mesmo
tempo, desvios heurísticos da prática
acadêmica e profissional corrente de
Relações Públicas. É basicamente uma
provocação para que outros também venham
a apresentar outras idéias heréticas,
para que fique assegurada a
sobrevivência da profissão de Relações
Públicas.
Ao examinar o lado acadêmico de Relações
Públicas, pode ser observado que muito
pouco, em termos de novas idéias, tem
surgido. A repetição constante dos
mesmos conceitos provoca um desgaste
natural desta teoria, pois a repetição
nem sempre transmite o conteúdo completo
e, como nada é adicionado, o desgaste é
muito grande. Não que esta teoria não
seja boa. Ela é a melhor possível. Mas
não tem avançado tanto quanto permite os
caminhos abertos pelos seus autores.
Colocá-la em cheque poderia ser uma
opção, desde que lúcida, para testá-la
em novas aplicações, novas maneiras de
pensar, ou mesmo uma leitura mais
moderna desses pressupostos, ainda não
totalmente esgotados. Entretanto, o que
se observa é uma crítica contundente por
parte daqueles hábeis leitores das
"orelhas" de livros, que não leram, não
entenderam, mas partem para a crítica,
como se fossem grandes pesquisadores.
Além disso, não apresentam nenhuma
contribuição teórica para modificar ou
mesmo refutar o que é tido até como
senso comum.
Falar-se em público, comunicação
dirigida, pesquisa de opinião,
comunicado de imprensa e outras
expressões corriqueiras no meio
acadêmico, faz com que os "grandes"
profissionais ou apresentem um ar de
espanto ou de total desprezo, pois para
eles professor não é um profissional de
Relações Públicas em atividades
acadêmicas, aluno é um alienígena, e a
escola é alguma coisa para se ficar
distante.
Não se pode dizer, também, que o que se
produz nas escolas é a mais pura ciência
de Relações Públicas. Infelizmente,
muitos cursos de Relações Públicas ainda
são "tocados" por recém-formados ou por
professores improvisados de outras
áreas, que apenas procuram desempenhar
um papel de reprodutores salivares
daquilo que um dia tiveram uma vaga
referência. Mas, existem exceções, e
elas apresentam um número significativo.
A baixa remuneração, a falta total de
condições plenas de ensino e pesquisa, o
despreparo dos alunos ingressantes nos
cursos superiores, faz com que a
situação tenda a agravar-se. Chegou-se
ao absurdo das entidades mantenedoras
preferirem graduados, em detrimento dos
pós-graduados, para gerar uma "economia"
para os seus cofres. E o nível de
ensino, como fica? Resposta: professores
fazem de conta que estão ensinando e os
alunos fazem de conta que estão
aprendendo algo, ou até alguma coisa
realmente útil.
Esta situação, felizmente, começa a
mudar, não por uma "tomada de
consciência" dos interessados, mas por
forças externas, isto é, em decorrência
das exigências do Ministério da
Educação, pela realização da avaliação
dos cursos, professores e alunos.
Aqueles realmente preocupados com a
situação ficam praticamente sozinhos com
os seus temores, pois os profissionais
já colocados no mercado de trabalho não
querem nem lembrar que existem cursos de
Relações Públicas, quanto mais
contribuir com a sua experiência ou
mesmo com a pressão de sua importância,
quando poderiam propor convênios, ajudas
financeiras, ou mesmo, um tipo de
fiscalização para que as escolas
pudessem oferecer aquele mínimo
necessário ao futuro profissional que
estará concorrendo no mercado. Aqui,
também, há exceções, mas são poucas.
Isto tudo poderia levar para uma outra
heresia. Teriam esses profissionais que
estão atuando no mercado de trabalho
contribuições reais a oferecer às
escolas? Pelo que se tem visto, a
resposta é: não.
Por recusarem compreender a teoria
proposta, as pesquisas desenvolvidas
(principalmente pelos programas de
pós-graduação), por não saberem das
reais potencialidades surgidas nos
cursos de graduação, esses profissionais
permanecem repetindo eternamente as
mesmas "técnicas", as mesmas rotinas e
as mesmas performances, que um dia deram
certo. Ter uma experiência repetida
vinte vezes, não é a mesma coisa que ter
vinte anos de experiência.
Os profissionais no mercado de trabalho
desenvolvem determinadas alquimias
entendidas somente por eles próprios.
Exceções existem, felizmente, mas são
poucas. Apesar disto, esses praticantes
de Relações Públicas acabam sendo
considerados os maiores. E os menores? A
heresia está em que, qualquer que seja a
experiência, ela deve ser compartilhada
e estar aberta às críticas, para que
tanto os profissionais como os
estudantes de Relações Públicas, possam
tirar delas novos caminhos, novas
posturas, novos padrões éticos, e o
melhor lugar para que isto ocorra é, sem
dúvida nenhuma, o mundo acadêmico de
Relações Públicas.
Se verificarmos outras profissões,
constata-se que os iniciantes estão
ligados aos grandes nomes, são
discípulos de determinados
especialistas, e têm muito orgulho
disto. Já em Relações Públicas...
Aqueles que se aproximam das escolas de
Relações Públicas passam a ser vistos
com desconfiança pelos seus pares. Qual
seria a intenção? Preparem-se para o que
está por vir? Quere, descobrir
mecanismos para resguardarem-se das
reais potencialidades? As dúvidas são
muitas, e o quadro fica mais claro
quando se participa de encontros,
seminários, congressos. Aqueles que são
convidados a falar – e, praticamente,
são sempre os mesmos, pois não se sabe o
que está sendo realmente produzido e
muitos profissionais simplesmente se
escondem – fazem relatos parciais,
contando o milagre mas jamais o "santo"
ou a "prece".
O que ouvimos é o quanto foi gasto para
a distribuição de agrados e de brindes,
na veiculação de anúncios na televisão,
ou o quanto foi conseguido na imprensa
em termos de informação gratuita. E o
público? O público que se dane! E a
responsabilidade social da empresa? Nem
sei o que é isto! E o assessoramento à
alta direção, a pesquisa? Ah! Isto é
conversa de professor, de teórico, a
realidade profissional é outra. E qual é
a realidade profissional, então? Bem,
isto é outra conversa, que fica para
outro dia. Até logo. Venham me visitar,
OK?
Então, o que fazer? Cabe aos
profissionais de Relações Públicas
tentar outras idéias, colocar no papel
as suas experiências, sistematizá-las
objetivamente, com método, para que os
leitores tenham condições de perceber o
quadro como um todo. O caminho intuitivo
poderia ser uma grande contribuição
desses profissionais, quando tentariam
teorizar em torno daquilo que tem como a
prática profissional de Relações
Públicas. O grande perigo aqui é se o
que está sendo feito é realmente
consistente e importante.
Esses mesmos profissionais devem
procurar as escolas, ficar à disposição
dos professores, cobrar uma participação
mais efetiva e, eventualmente, conseguir
de suas empresas uma participação
financeira de apoio às iniciativas das
escolas. Não é necessária uma grande
contribuição, mais o somatório de
pequenas quantias poderia dar bons
resultados. Que tal se, ao invés da
produção de caros brindes ditos
culturais, o famigerado "marketing
cultura", esse mesmo dinheiro fosse
encaminhado para uma escola para equipar
um laboratório de Relações Públicas?
Parecer heresia? Então as coisas estão
realmente precisando ser mudadas.
As escolas, seus alunos e professores,
devem estar conscientes daquilo que
realmente desejam. Para isto, é
importante que conheçam os
profissionais, debatam com eles,
procurem conhecer novas obras e não
somente aquelas indicadas pelos
professores, decidir ser efetivamente um
profissional de Relações Públicas e
procurar todos os meios para que isto
ocorra.
Um recado tanto para os profissionais
como para estudantes e professores da
área: qual foi a última vez que a sua
entidade associativa, a ABRP, foi
procurada? Está registrado no Conrerp? E
as anuidades, estão em dia? Isto é uma
outra heresia? Tomara que não.
Para finalizar, o que realmente importa
é que todos nós, profissionais,
professores, alunos de Relações
Públicas, dediquemos um tempo para
pensarmos na profundidade e na
abrangência das Relações Públicas,
preparando esta atividade para os novos
tempos, quando a participação mais
efetiva e consistente nas organizações
será uma exigência.
Se não estivermos preparados para isto,
outras profissões ou profissionais irão
ocupar o nosso lugar, pois terão muito
mais para oferecer do que a simples
rotina. A nova administração que se
desenvolve está preocupada com o
ambiente no qual as empresas atuam, e
quem, melhor do que nós, poderia
interpretar este ambiente? Ou conhecer
os públicos de interesse da organização
seria mais uma heresia?
Adaptação de artigo originalmente
publicado no número 34 do jornal O
Público, órgão informativo da Associação
Brasileira de Relações Públicas – Seção
Estadual de São Paulo, em junho/julho de
1988, página 3.