Cultura global: nova perspectiva
de cidadania ou simplesmente "marketing cultural"?
Por Telenia Hill
02/05/2007
Ao se refletir sobre a transformação da cultura e da
comunicação na segunda metade do século XX, avalia-se
até que ponto o fenômeno da Revolução e o movimento
revolucionário de maio 68, terão influído na dinamização
daquele processo. Não se tem o objetivo de estabelecer a
relação causa e efeito, mas o de flagrar a interrelação
que se opera entre revolução, comunicação e cultura.
Partindo da concepção estrutural de cultura proposta por
Thompson, delineia-se o altíssimo grau de importância
que se atribui ao estudo das formas simbólicas, que vai
além da análise dos traços de sua estrutura interna.
Devem-se privilegiar os processos, as instituições e os
contextos sociais dentro dos quais o discurso é
pronunciado, transmitido e recebido, pela análise das
relações de poder, formas de autoridade, tipos de
recursos e outras características desses contextos.
Procurando aprender a lição do maio 68 no Brasil, e
tomando a França como referência, pelas transformações
ali ocorridas, vai-se registrar a crise da burguesia,
que provocará uma fissura no tecido social. O movimento
estudantil contribuiu para demonstrar os impasses
econômicos. Mascarava-se a destruição dos antigos
valores sobre os quais era moldada a burguesia pela
"dinâmica econômica da época" e pelo "derramamento dos
valores sobre o individualismo privado".
A manifestação pública dos jovens ofereceu um belo
exemplo de nacionalismo e conscientizou a decadência,
ou, mesmo, a morte da sociedade que assistia à derrocada
dos valores familiares e religiosos. Esta é apontada
como a causa, talvez, de desordens da alma e da
consciência observadas, e do surgimento de uma sociedade
sobretudo indiferente, anônima e cibernética, que irá
constituir uma comunidade muito frágil. A partir daí
coloca-se em evidência uma nova postura humana, e,
segundo Morin (1988, p. 124), o movimento de 68
reintroduziu, no mundo moderno, em países prósperos,
"fermentos tradicionais de contestação" que, trabalhando
o terreno novo, pôde acelerar as mutações dos séculos XX
e XXI. Castoriadis (Ibidem), entretanto, argumenta que o
fermento da "crise" se instala na juventude (estudantes,
operários, professores, etc), e questiona se, no futuro,
terão elas coesão suficiente para desempenhar uma função
histórica. Não serão tragadas pelo império da cultura a
que são subjugadas?
Pensa-se que a resposta já está sendo dada pela cultura
dos tempos de hoje que, cada vez mais, faz parte de um
processo de mercantilização que se diz de caráter
global.
Featherstone (Featherstone, 1994, p. 71) questiona a
expressão cultura global se global referir-se à "cultura
do estado nacional como um todo". Entretanto, segundo
ele, seria admissível se se abandonasse a estaticidade
do conceito de global e se se reportasse a processos de
integração e desintegração cultural que ocorrem a nível
transnacional ou transocial. Como afirma o autor, "pode
ser possível destacar processos culturais transociais
(...) que sustentam a permuta e o fluxo de mercadorias,
de pessoas, de informações, conhecimentos e imagens que
dão origem aos processos de comunicação e que adquirem
uma certa autonomia a nível global". São os chamados
sistemas emergentes de "terceiras culturas" que
ultrapassam o simples sistema de trocas bilaterais.
Featherstone salienta ainda que o processo de
aculturamento global não concorre necessariamente para o
enfraquecimento dos países, e, também, as terceiras
culturas não concorrerão obrigatoriamente para a
homogeneização.
É importante que se chame atenção para o fato de que uma
discussão sobre cultura global é delimitada por um
tempo, um espaço e por agentes de discussão específicos.
O próprio tempo em que se discute está sujeito a
discordâncias no que toca à sua caracterização.
Marshall Berman, por exemplo, não aceita que se denomine
como pós-modernidade a época em que se vive. Ele é um
dos maiores defensores do termo Modernismo. Para esse
autor, "ser moderno é descobrir que estamos em um
ambiente que promete aventura, poder, alegria,
crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo - e
que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, o
que sabemos, tudo o que somos". A modernidade unifica
toda a humanidade, mas "é uma unificação paradoxal, uma
unificação de desunião; despeja todos nós no turbilhão
de eterna desintegração e renovação, de luta e
contradição, ambigüidade e angústia" (BERMAN, apud
KUMAR, 1997, p. 85). Berman é implacável com pensadores
do grupo de pós-modernos da década de 70: Derrida,
Barthes, Lacan, Foucault, Baudrillard e seguidores.
Afirma que eles se retiraram para um mundo intelectual
abstrato, alienado de qualquer realidade política e
social -- se apropriaram da linguagem modernista de
progresso radical, transformando-a num jogo
essencialmente estético, dissociada de seus contextos
político e moral. Seriam eles os herdeiros das
esperanças frustradas de maio 68 na França, e "se
enterraram em uma grande tumba metafísica, espessa e
apertada o suficiente para fornecer conforto duradouro
contra as cruéis esperanças da primavera" (Ibidem, p.
186). Berman, Habermas e pensadores afins crêem que a
modernidade ainda não se concluiu, do momento em que em
grandes espaços do mundo está-se começando a viver a sua
plenitude. É um processo que tem ainda um potencial a
ser vivido, e "apropriar-se da modernidade de ontem pode
ser simultaneamente uma crítica à modernidade de hoje e
professar um ato de fé na modernidade ... do amanhã e do
depois de amanhã " (Idem). Isso atesta a concordância
com o pensamento de muitos estudiosos de que o manancial
de estudo sobre a modernidade se encontra nos
pensadores, filósofos e escritores do século XIX, como
Marx, Nietzsche, Baudelaire e Dostoiévski.
O caminho para a civilização científico-industrial,
escolhida pela maioria das sociedades, foi o do
fundamentalismo secular do Iluminismo, e Gellner
assinala que "vivemos em um mundo no qual o estilo de
conhecimento (a racionalidade do Iluminismo), embora
nascido de uma única cultura , está sendo adaptado por e
a cada uma das múltiplas culturas surgidas, com enorme
rapidez e ânsia, subvertendo muitas delas e
transformando totalmente o ambiente em que vive o homem.
Isso é apenas um fato" (GELLNER, apud KUMAR, 1997, p.
187).
Diante dos prós e dos contras, cabe a pergunta: A
pós-modernidade realmente existe? Segundo Krishan Kumar,
se não existe, ela nos cerca por toda parte. A criação
incessante de "um ambiente saturado de imagens"
autentica-a, segundo o autor, uma vez que é veiculada
pelas indústrias da cultura. Vive-se, pelo menos durante
grande parte do tempo, uma realidade virtual que é
experimentada extaticamente por meio da Internet, com
deleite ou sofrimento, no trabalho ou no lazer. Vive-se
o momento da cultura-mercadoria, em que a cultura deixou
de ser um complemento à nossa atividade de trabalho para
constituir a própria atividade, que toma uma dimensão
industrial, sendo produzida e consumida inclusive nas
horas de folga.
Alguns estudiosos, apesar de sua cautela em afirmar o
pós-modernismo como teoria, denominam-no "a lógica do
capitalismo tardio". Se se quer proceder a uma análise
que produza frutos, deve-se focalizar as áreas
econômica, social e política.
Segundo ainda Kumar, a pós-modernidade se concentra mais
nos efeitos perceptivos e expressivos da tecnologia da
informação do que em seu impacto econômico, como atestam
os trabalhos de Jean Baudrillard e outros.
Já se fez referência às importantes transformações que a
visão da realidade e o comportamento individuais vêm
sofrendo, mas seria duvidoso afirmar que a sociedade de
informação estaria inaugurando "uma nova ordem social".
Com respeito aos novos movimentos sociais, ao invés da
propalada homogeneização automática, flagra-se uma
tensão entre o local e o global, avultando a importância
que se dá à interação com as operações do capitalismo
contemporâneo.
Como declara Harvey, "quanto mais unificado o espaço,
mais importantes se tornam as características da
fragmentação para nossa identidade e ação social. A
livre circulação do capital pela face do globo (...)
coloca uma forte ênfase nas qualidades particulares dos
espaços para os quais esse capital poderia ser atraído.
O encurtamento do espaço, que põe em concorrência
comunidades diferentes em todo o mundo, implica
estratégias competitivas voltadas para o local e um
senso aguçado de percepção do que torna um deles
especial e lhe confere vantagem competitiva.
Indiretamente o global estimula o local mas esse assunto
se reveste de muita complexidade. Como acrescenta
Harvey, "a acumulação flexível explora tipicamente uma
larga faixa de circunstâncias geográficas aparentemente
contingentes e as reconstitui como elementos internos
estruturados de sua própria lógica abrangente" (HARVEY,
1989, p. 24).
Parece que o pós-modernismo, na defesa da característica
de apologia ao lugar e às identidades locais, ignora
esse fator irrefutável, uma vez que o constata e o
louva, como se fossem verdadeiras essas manifestações de
aparente autonomia, geradas por forças ocultas que
dissimulam a liberdade de uma auto-afirmação local.
Assim, faz-se mister que a produção local se adapte a um
capital cada vez mais versátil da economia mundial.
Cria-se um produto, com pequenas variações de
características específicas, ligando-se o global ao
local e ao diverso. Poder-se-ia fazer referência, entre
outros, ao marketing global do McDonald's, da
Disneylandia, das cadeias de hotéis Hilton e Holiday Inn
(de origem americana). Também veículos de comunicação
global, como a News Corporation, de Rupert Murdoch, ou a
Sony Corporation, do Japão, constroem e propagam as
preferências e as posturas de destaque por todo o mundo.
Pode-se identicamente considerar Londres, Nova York ou
Tóquio como cidades globais, de onde provém o controle
mundial da circulação de "imagens, informações, bens e
serviços padronizados".
Se se refletir aí sobre o emprego do termo global ,
vê-se que ele é postiço, do momento em que ele encobre
sua procedência. É compreensível que essa ideologia de
marketing se difunda principalmente a partir dos Estados
Unidos, do momento em que ela concorre para lhes
fortalecer a hegemonia. É de interesse deles que se
diga, por exemplo, que a Coca-Cola , a Disneylandia ou
os hotéis Hilton sejam empresas globais antes de serem
norte-americanas, o que, nesse contexto, faz certo
sentido. Entretanto, o que não se compreende é que o
resto do mundo aceite tal impostura.
A ilusória especificidade do produto atende à demanda de
um marketing global, que se realiza por meio dos
shopping centers existentes em grande quantidade no
mundo capitalista moderno. Constata-se neste último
quarto de século uma vitalidade do capitalismo que se
dissemina e atinge todo o globo, verticalizando a
influência sobre o quotidiano das sociedades ocidental e
ocidentalizada, e interiorizando-se na política e na
cultura, e no bem-estar social. Essa influência faz-se
sentir também na educação, nas artes, nos meios de
divulgação, na saúde, na seguridade social, e até na
polícia e nos serviços penitenciários.
Lamentavelmente, tem-se de reconhecer que o planeta
passa por uma metamorfose que busca transformá-lo numa
imensa zona de livre comércio. Isto é expresso
sintomaticamente, no quotidiano, por uma ideologia que
busca fazer-nos ingressar numa sociedade global. Como
aponta Alain Touraine, "uma coisa é afirmar o triunfo de
uma sociedade de mercado; outra, totalmente diferente, é
dizer que a sociedade deve ser regulada como um mercado,
e, portanto, ser liberal, ou seja, capaz de reduzir,
tanto quanto possível, as intervenções voluntaristas do
Estado, dos monopólios, da Igreja (TOURAINE, 1996, p.
6).
A política de consumo passou a visar o corpo e o sexo.
Como afirma Kumar, "a publicidade tem procurado nos
conscientizar de novas ansiedades de identidade e
segurança pessoal e garantir-nos que há mercadorias e
serviços que podem satisfazer todas as nossas
necessidades e aliviar todos os nossos medos" (KUMAR,
1997, p. 201). Em todos os espaços o capitalismo formou
uma estratégia para transformar tudo em mercadoria a ser
consumida.
A partir desse status quo muitos teóricos concentram no
capitalismo a causa das mudanças do mundo atual. Vêem-no
como um processo em constante mutação que forja novas
formas de arte, valoriza a cultura e a informação e
mantém um equilíbrio entre o público e o privado. Tudo
isso seria propulsionado pela acumulação do capital e
pela ampliação cada vez maior do mercado.
Se existem teóricos que admitem a óptica do "imperativo
capitalista", outros há que vêem nela um exagero. O
"império capitalista" não é exclusivo do tempo presente.
Ele se fez sentir em outras épocas do passado, como, por
exemplo, na Renascença e no Romantismo.Também no início
do século já se falava de economia global, ou do triunfo
da economia financeira. Entretanto, anos mais tarde,
estouraram guerras e revoluções locais, que revigoraram
a situação dos Estados nacionais. Touraine acredita que
se dissipará num amanhã a ilusão de um mundo
globalizado, e que o império chinês ascenderá, como
aconteceu com o poderio japonês, anteriormente à "grave
crise financeira" que reduziu "durante alguns anos as
ambições das empresas nipônicas".
Apesar de reconhecer-se que ainda não se deixou de viver
num mundo dominado pelo capital, se se fala em
pós-modernismo, pergunta-se até que ponto, em sua
abrangência, ele só pode ser explicado pela sistemática
do movimento capitalista?
Diversos autores distinguem duas formas principais do
que chamam pós-modernismo: "um pós modernismo adaptativo
e um pós-modernismo de resistência. O primeiro parece
ajustar-se à demanda do chamado "capitalismo tardio".
Incensa a cultura de massa, o consumismo e o
comercialismo. Com respeito à cultura de elite, assume
uma postura marcadamente populista. Adere ao slogan
"Compro, logo existo". Como atitude de vida, ao menos
aparentemente, se ajusta aos diversos aspectos do modo
de vida da nova classe média "pós-industrial", como "na
mídia, na publicidade, na educação superior e nas
finanças". O segundo resiste à cultura capitalista
contemporânea, gerando movimentos sociais que
reivindicam maior liberdade de pensamento e ação no que
toca aos reclamos das minorias, com respeito a sexo,
raça, ou mesmo melhores condições locais de vida,
preservando sua singularidade doméstica. São solidários
aos que se opõem à homogeneização capitalista.
A globalização pode significar ainda uma nova
perspectiva de cidadania e de consciência global. O
chamado pensamento pós-moderno, que veicula a
globalização, nesse aspecto, se volta contra a tentativa
de unificar a história ou o segmento geográfico do
globo. Se por um lado, há o reconhecimento de uma utopia
nacionalista ou localista, por outro, paradoxalmente,
reconhece-se o direito de mobilização de um novo
florescimento de qualquer nação ou local.
Daí acrescentar-se que "o pós-modernismo, de uma
maneira, reage contra o universalismo do Iluminismo,
mas, de outra, promove o cosmopolitismo iluminista"
(Ibidem, p. 203), isto é, espera-se que o produto
multinacional, ao invadir o local, encontra resistências
provindas das peculiaridades contextuais e culturais.
Deverão ser mobilizadas forças locais que aproveitem o
máximo da interação entre o global e o local. Nesse
caso, tomar uma atitude reacionária poderá prejudicar o
fluxo da história. A identidade do lugar e das pessoas
está em constante transformação e, também, se
beneficiará das influências estrangeiras, sem abrir mão
de suas características essenciais.
As mudanças no mundo de hoje acontecem principalmente
nos setores político, cultural, social e espacial, que,
naturalmente, são interdependentes. Em vez de se
absolutizar e eternizar a vigência do capitalismo,
tem-se de analisá-lo como um ocorrência circunstancial.
Este se fortaleceu mais com a queda da União Soviética,
e o declínio, em geral, do socialismo. Há ainda a
possibilidade de que o capitalismo avance, e não há como
fugir da sua face global. Entretanto, tem-se de
reconhecer o que lhe é característico, por meio de certa
flexibilidade, condicionada à diversidade de lugares e
ocasiões, e que, de certa forma, se reconhecerá como o
"capitalismo pós-moderno".
Mesmo sem concluir se o momento que se vive é plenamente
pós-moderno ou ainda moderno, sente-se que ele é de
essencial importância, e que dirige a reflexão sobre si,
principalmente pela tendência globalizadora da cultura.
Se por um lado se constata este aspecto horizontal da
rede de relações que se impõe, por outro, tem-se de
reconhecer o aspecto vertical, ou, seja, o da
especificidade localista. Dependendo da situação, a
atuação globalizadora da cultura pode tornar-se uma
força sobre a qual a sociedade não tenha controle.
Qualquer sociedade, para se unir, necessita de que seus
valores sejam compartilhados, mas não os de mercado em
que um participante, numa troca livre, será o que paga
ou o que recebe; tudo nessa troca, como seres humanos
(trabalho) e natureza(terra) são reduzidos a
mercadorias. Ao contrário da economia de mercado, uma
sociedade de mercado jamais vingará porque a sociedade,
que tem como agentes seres humanos, necessita de
instituições que estejam coerentes com seus objetivos,
como liberdade política e justiça social. O que se pode
flagrar é que o crescimento da sociedade global, se
isto, realmente, está sendo possível, tem-se defasado
com relação ao da economia global.
A partir daí é-se levado a pensar nos chamados países do
Terceiro Mundo, em que "o êxodo rural, migrações,
explosão demográfica, pobreza e marginalidade", fazem
com que eles se apresentem quase que completamente
frágeis e impotentes diante da ação de agentes
político-sociais poderosos.
Como exemplo ilustrativo, poder-se-ia citar, mutatis
mutandis, a visita do presidente Clinton em outubro de
1997 ao Brasil, revestida, aparentemente, de encantadora
simpatia, mas nem por isso destituída de séria busca de
objetivos.
Pela competente cobertura feita pelo Jornal do Brasil,
de 16.10.97, Primeiro Caderno, com abundância de
detalhes e imagens, destacando-se a foto do presidente
tentando tocar tamborim e ocupando quase toda a primeira
página, pode-se apreciar a performance de um estratego
político exemplar. Consciente dos conflitos sociais
gerados pelos impasses neoliberais, Clinton se adianta a
dizer que "a globalização não reduziu os problemas
sociais". E acrescenta: "Estudamos as possibilidades de
incrementar nosso comércio global, mas temos de
trabalhar arduamente para reduzir as lacunas entre os
que têm e os que não têm, e assim garantir que todos
tenham trabalho no futuro que estamos construindo." Aí
pode-se registrar a preocupação de negociar nas duas
frentes, a da integração comercial e a do progresso
social.
É bem contraditória a referência acima,do momento em
que, segundo alguns estudiosos, é a própria globalização
do sistema que se coloca como a causa que impede a
garantia do bem-estar dos cidadãos, até no chamado
Primeiro Mundo.
Principalmente nos países mais desenvolvidos da Europa e
da América do Norte, logo após o final da Segunda Guerra
Mundial, o Estado teve papel importante na manutenção da
estabilidade econômica, buscando oferecer igualdade de
oportunidades e assistência social básica . Entretanto,
bem diferente desse passado não tão longínquo, na era
globalizada os recursos para fins sociais foram
duramente prejudicados, porque o capital escapa da
taxação muito mais facilmente do que o trabalho.
Segundo o economista Dani Rodrik, apud George Soros
(Veja, 24.12.97, p. 90), "a globalização aumenta as
demandas sobre o Estado, para que ele proveja benefícios
sociais, enquanto reduz a capacidade de atender a essas
demandas", o que conduz ao cerne do conflito social. "Se
os serviços são muito reduzidos, no momento em que a
instabilidade está em alta, o ressentimento popular pode
levar a uma nova onda de protecionismo, tanto nos
Estados Unidos quanto na Europa".
Continuando o discurso: "No Brasil, nos Estados Unidos e
pelo hemisfério afora, muitas pessoas questionam a
pressão da competição e não sentem os benefícios das
mudanças que estão em curso." Com relação aos que têm e
aos que não têm, o tal abismo é, para ele, "uma praga
antiga na América Latina, a qual precisa ser tratada com
mais seriedade, não só por governos, mas também pela
iniciativa privada".
Esta fala nos faz pensar no relacionamento entre
capitalismo e democracia. Como aconteceu no Japão, na
Coréia e nos "tigres" do Sudeste Asiático, o Estado se
aliou a empresas locais que necessitavam de ajuda e
colaborou para que eles acumulassem capital. Tem-se um
modelo de desenvolvimento que transita da autocracia e
da acumulação de capital para a democracia e a
prosperidade. Naturalmente, isso ocorre mais facilmente
em países prósperos do que em países pobres. Entretanto,
não é assegurada a transição da autocracia para a
democracia, porque os que estão em posição de mando não
querem, de maneira alguma, abrir mão de seu poder.
O pomo da discórdia, a Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA), só foi mencionado uma vez, apoiando-se
argutamente na referência ao Mercosul, sobre o qual teve
sua opinião mudada, em virtude de circunstâncias
políticas contrárias: "Esperamos que cada passo desse
processo de integração hemisférica, seja no Mercosul ou
no Nafta, seja onde for, nos leve ao objetivo comum, que
é uma área de livre comércio das Américas em 2005".
Américas, para o presidente, é a parcela do globo que
vai do Alaska à Patagônia.
Mercados comuns foram um tema recorrente. E com a idéia
obsessiva de garantir a hegemonia dos Estados Unidos,
referia-se sempre ao Mercosul como algo compatível com
aquela pretensão: "Eu quero que a América lidere o
processo de integração econômica, elevando os padrões de
vida do nosso hemisfério e também do mundo."
É ilusório crer que um país se desenvolva sem uma
política forte, do ponto de vista de seu sistema e de
sua vontade. Daí a existência do Mercosul que busca,
para o Cone Sul, uma união econômica, do tipo europeu,
que concorra para criar um ator político nacional.
Naturalmente, esse vislumbre de fortalecimento assusta o
presidente americano, que não quer que se enfraqueçam os
laços comerciais com a periferia, e tem uma meta a
alcançar, mais ampla, em 2005, que é o livre comércio
das Américas.
Plano Real, prosperidade brasileira, educação e
tecnologia, Internet e novas tecnologias de comunicação,
foram também assuntos inseridos inteligentemente em seu
discurso.
E com um fecho de ouro, no discurso em São Paulo,
questiona: "Que países têm feito mais pela economia
global?" Ao que responde: "As nações precisam ter o
globo dentro de suas fronteiras. Esta é uma lição que
Brasil e Estados Unidos não devem jamais esquecer."
No discurso pronunciado em Brasília, Clinton declara que
"Brasil e Estados Unidos têm uma responsabilidade muito
especial, que é a de liderar as Américas no século XXI".
Segundo analistas de diferentes tendências, essa
afirmação seria resultante da impressão que lhe causaram
o peso da economia brasileira, a extensão geográfica, a
população expressiva, e a política externa adotada neste
século. Mesmo assim, é de se admirar que um país de
Primeiro Mundo, que tem a dianteira econômica, queira
aliar-se a um país "em desenvolvimento". Com respeito ao
que José Carlos Braga expõe sobre o assunto em foco,
acusa-se um abismo entre os dois pontos de vista.
Segundo este autor, a globalização vive sob o seu
espectro de nem colapso nem desenvolvimento. A
instabilidade contemporânea tem sido perversa, no
sentido de querer "combinar alta especulação financeira
com crescimento mínimo, coisa capaz de evitar o colapso,
garantir, em geral -- com o apoio dos tesouros nacionais
e dos bancos centrais -- os lucros de todo tipo e
arrebentar com a maior parte das periferias sociais e
geográficas"(BRAGA, 01.09.96, p. 3).
Ainda segundo o autor citado, ao invés de um porvir
promissor, se nos afigura uma catástrofe que tem sua
causa: na paulatina estagnação da economia desde os anos
70, em comparação com anos anteriores; no declínio
gradativo da força econômica dos Estados Unidos, apesar
de ainda hegemônico, do ponto de vista monetário,
industrial, comercial e fiscal; no fenômeno de
desemprego estrutural da Europa; na tendência, nos anos
90, à desestruturação do capitalismo japonês,
caracterizado, antes, pela organização; na
mercantilização desordenada e bárbara da Rússia; no
processo de desindustrialização da América Latina, que
tem, incondicionalmente, como meta, a "estabilização a
qualquer preço, baseada em âncoras artificiais,
sobretudo, a cambial"; na situação da África, que torna
o continente indesejável aos investidores, no que toca à
qualquer missão civilizatória.
Salta aos olhos, finalmente, "uma economia fetichizada
em que a circulação monetário-financeira ampliada em
vertiginosa espiral guarda tênue correspondência com os
fundamentos econômicos esmaecidos do investimento
produtivo, da renda (lucros operacionais e salários), do
emprego, da infra-estrutura econômica e social"(Idem).
Acrescente-se, ainda, a decadência das dívidas
financeirizadas dos Estados nacionais que crescem
gradativamente, em vista de seus títulos nutrirem a
juros o capital globalizado.
O que se disse até agora seria suficiente para fornecer
elementos de análise da visita do presidente americano
ao Brasil. Preservando a hegemonia do país que governa,
será bastante conveniente, para ele, associar-se a um
país que ainda guarda reservas de extensão territorial e
latência de progresso, fortalecido pela existência de
uma Amazônia, já caracterizada como "o pulmão do mundo".
Ao acolher o globo em sua fronteiras, o Brasil terá
nelas, prioritariamente, os Estados Unidos, que, com
isso, alargarão seus limites territoriais.
O Brasil e os demais países das Américas, de economias
periféricas, de acordo com o quadro atual da divisão
internacional do trabalho, da renda e da riqueza, já têm
reduzidos seus graus de liberdade na reestruturação de
suas economias. E o que ainda estará por vir?
Pelo que se relatou, e segundo A. Giddens (2002, p. 13),
"há razões fortes e objetivas para se acreditar que
estamos atravessando um período importante de transição
histórica".
Como um fenômeno pluridimensional e inovador, a
globalização põe em jogo um sem número de formas de
risco que vão desde as envolvidas na economia eletrônica
global até a vida quotidiana de cada um.
Há de se atentar, portanto, para a importância do que se
refletiu.
O mundo contemporâneo escapou aos moldes delineados
pelos iluministas e por Marx, no sentido de que o homem,
por meio de sua racionalidade, poderia mudar os rumos da
história. A ciência e a tecnologia tornaram-se
globalizadas e, muitas vezes, em sua escalada de
progresso prestam desserviço à humanidade, caso da
poluição ambiental, do efeito-estufa e do buraco de
ozônio.
Conduzida pelo Ocidente, a globalização continua a
carregar a marcante influência do poder americano,
político e econômico, com extrema desigualdade em suas
conseqüências. Mas, numa ocorrência de fatos em escala
global, ela afeta também os Estados Unidos.
Paradoxalmente, a globalização estimula a expansão da
democracia e denuncia os limites das estruturas
democráticas mais conhecidas.
Faz-se mister, pois, que o homem se conscientize do
momento em que vive, assumindo o controle de um mundo
que, cada vez mais, perde sua legítima direção.
Milton Santos (2001, p. 154) adverte que "a globalização
atual e as formas brutais que adotou para impor mudanças
levam à urgente necessidade de se rever o que fazer com
as coisas, as idéias e também com as palavras. Qualquer
que seja o debate, hoje, reclama a explicação clara e
coerente dos seus termos, sem o que se pode facilmente
cair no vazio ou na ambigüidade".
A história de cada nação é amesquinhada em nome do
alcance de metas quantitativamente indiciais de
progresso, hegemônicas, que decorrem da abertura e da
obediência dos países subjugados, tendo, como
conseqüências, mais fragmentação e mais desigualdade.
Neste status quo, é notório que o discurso da
globalização, em suas múltiplas faces, sirva de alicerce
ao poder dos Estados, das empresas e das instituições
internacionais. Sem esperança de um futuro promissor,
instala-se um sentimento de indiferença que contamina
jovens e até mesmo intelectuais.
Seguindo a óptica do pensamento único, apresentam-se
apenas algumas possibilidades de realização, omitindo-se
outras que se poderão manifestar, quer sejam já
existentes ou perfeitamente passíveis de existir.
Segundo ainda as pegadas de Milton Santos (2001, p.
161), que crê na viabilidade do surgimento de uma outra
globalização, ao invés de um, se depararão muitos
futuros, "que resultarão de arranjos diferentes, segundo
nosso grau de consciência entre o reino das
possibilidade e o reino da vontade". E acreditando na
perspectiva de um futuro diferente, assinalam-se desde
já algumas manifestações: "a tendência à mistura
generalizada entre os povos; a vocação para uma
urbanização concentrada; o peso da ecologia nas
construções históricas atuais; o empobrecimento relativo
e absoluto das populações e a perda da qualidade de vida
das classes médias; o grau de relativa "docilidade" das
técnicas contemporâneas; a "politização generalizada",
permitida pelo excesso de normas; e a realização
possível do homem com a grande mutação que desponta"
(Idem).
Neste início de século, a palavra velocidade cada vez
mais faz sentido. Tomando as técnicas como normas que
seguem uma diretriz política de poder, instala-se um
círculo vicioso. Nas diversas camadas da vida social, a
rapidez dos processos conduz à maior rapidez nas
mudanças, que, por sua vez, acelera novos processos e
gera a necessidade de novos seres organizadores.
Constata-se, assim, o império das normas, constituídas
por agentes centralizadores, planetários, ubíquos.
Registrando-se algumas vezes o conflito entre elas,
produz-se, para os indivíduos, uma atmosfera de
insegurança e até mesmo de medo. Apesar disso, e
acendendo a esperança do reavivamento, apontam-se os que
não se deixam vencer por esse império e buscam cada vez
mais conscientizar-se quanto ao destino do Planeta e do
Homem.
Referências Bibliográficas
SANTOS, Milton, (2001) Por Uma Outra Globalização Rio De
Janeiro/são Paulo: Record
BERMAN, Marshall, (1987) Tudo O Que É Sólido Desmancha
No Ar - A Aventura Da Modernidade São Paulo: Companhia
Das Letras
BRAGA, José Carlos De Souza, (1996) O Espectro Que Sonda
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GIDDENS, Anthony, (2002) Mundo Em Descontrole - O Que A
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Telenia Hill é crítica e ensaísta. Pós-doutora em
Ciências Sociais e Humanas pela Sorbonne-Paris Vème.
Professora na Escola de Comunicação da UFRJ.
Pesquisadora e orientadora nos cursos de Mestrado e
Doutorado. Premiada pela Academia Brasileira de Letras
com os prêmios Sílvio Romero, de crítica literária, e
Assis Chateaubriand, de textos publicados na Imprensa, e
pela U.B.E., com os prêmios Guararapes e Alejandro
Cabasa (ensaio cultural). Agraciada pela U.B.E. Rio de
Janeiro, como personalidade cultural do ano (1995). Além
de jornais e periódicos especializados, tem colaborado
nas revistas Colóquio-Letras, Lisboa; Taíra, Grenoble,
França; Sociétés, Paris; Cahiers de l'imaginaire,
Paris/Montpellier; Proceeding of Brasa Conference,
Washington; Eco Escola de Comunicação da UFRJ), e Vozes,
Petrópolis (RJ). Dentre outras obras, é autora de:
Perspectivas (em colaboração); O trajeto da imanência;
Literatura, existência e poder; L'homme dans la
modernité: une histoire de mythes; Homem, cultura e
sociedade, em pré-publicação.
Fonte: GHREBH - http://revista.cisc.org.br