Maratona da Vida
Por Tom Coelho
13/07/2003
“Brasil, qual é o teu negócio?” (Cazuza)
A cena é já velha conhecida de todos nós. O semáforo fecha, os carros param
e uma pessoa, jovem ou idosa, circula pelo corredor formado por entre os
veículos depositando objetos de toda ordem sobre o espelho retrovisor:
balas, canetas, flanelas, adesivos. Enfim, qualquer coisa que possa receber
o valor de R$ 1,00 estampado num pedaço de papel xerocopiado várias vezes
com mensagens de “estou desempregado”, “garantir o sustento de minha
família” e “Deus lhe abençoe”.
Dia destes flagrei-me conversando com meu lado mais cartesiano, aquele que
sublima a matemática existente por trás das notas musicais e da geometria
das construções. Os números, quando não manipulados, mentem jamais. O
cálculo dispensou uso de máquina: observei um garoto percorrer 10 veículos.
Considerando-se uma distância média de 2,5 metros por veículo (seu
comprimento acrescido da distância mantida para o colega posicionado
adiante), temos uma distância percorrida de 25 m. Porém, o garoto percorria,
a cada semáforo fechado, quatro vezes esta distância para distribuir,
retornar, recolher e posicionar-se no ponto de partida uma vez mais. Ou
seja, são 100 m por semáforo fechado. Tomando-se um intervalo de 2 minutos
entre duas paradas, o garoto percorre este trajeto 30 vezes em uma hora.
Fazendo-o por 6 horas ao longo do dia, temos a surpreendente marca de 18 Km
diários. Uma meia-maratona!
Sem preciosismos, podemos julgar o garoto do exemplo acima muito lépido e
argumentar que, na verdade, o trajeto percorrido não passa da metade do
exposto. Continuamos com 9 km diários, sob sol e chuva, descaso e
arrogância, medo e intolerância.
Este é um exemplo cristalino da Economia informal que toma conta deste país.
Há toda uma indústria paralela por trás desta mendicância: do fornecedor de
balas, canetas, flanelas e adesivos, ao fornecedor do papel xerografado e de
embalagem plástica que compõe o tal kit.
É evidente que sempre haverá quem argumente que tais pessoas gostam de
exercer esta “profissão”, que na verdade não querem procurar um “emprego”
legítimo. Ainda que isso seja um fato, em meu entender não generalizado, a
resposta a asserções deste gênero veio estampada nas manchetes dos jornais
do dia 24/06/03. Tumulto no Rio de Janeiro onde 15.000 pessoas se espremeram
como em latas de sardinhas numa fila para se candidatarem a vagas, incertas
em quantidade e data para início, para atuarem como varredores de rua, os
garis. Por um salário equivalente a US$ 7,00 diários, pessoas com nível
superior de instrução acamparam por até dois dias para pleitear a segurança
de um emprego.
Diante deste quadro, pode parecer contestação filosófica, bravata
pseudo-intelectual, mas não há como deixar de se questionar: Que diabos de
país é este que estamos construindo?
Em 19/09/2002 escrevi um artigo intitulado “Um Voto na Esperança”. Não foi
um texto muito difundido, até porque muito perecível. As eleições estavam
próximas. Nele, eu falava sobre a retórica do “Brasil, país do futuro” e
ilustrava nosso atraso sócio-econômico representado por nossa 65a posição no
ranking de desenvolvimento humano (IDH-ONU) e nossa majestosa 4a colocação
no Índice de Gini, que mede concentração de renda, no qual perdemos apenas
para os paupérrimos africanos Serra Leoa, República Centro-Africana e
Suazilândia.
Nove meses depois, transcrevo trechos daquele artigo:
“Não quero parecer teórico. Mas os números acima estão refletidos na
tragédia social que nos abate hoje. Desemprego, violência, crianças nas
ruas, epidemias, são subprodutos de um mal maior: o modelo econômico adotado
por nossos governantes e a gestão pública praticada neste país. O Estado
brasileiro se desenvolveu e esqueceu a nação, esqueceu o cidadão.
Acredito que meio século deve ter sido minimamente suficiente para sepultar
a idéia de “fazer o bolo crescer para depois repartir”. O Brasil já não pode
mais ser o país do futuro porque está paulatinamente corroendo o entusiasmo
e a esperança no seio de cada cidadão. Parafraseando Shakespeare, “nós
sabemos o que somos, mas não o que podemos ser.”
As eleições de outubro próximo simbolizam uma vez mais um marco na condução
dos rumos deste país. E não estou falando apenas de eleição presidencial,
mas em todos os níveis (não prospera o Gabinete sem o Parlamento).
Democracia não se fala. Pratica-se. Cada povo tem o governo que merece e
nenhum governo pode ser melhor do que a opinião pública que o apóia.
Uma vez mais, vemos desfilando candidatos que prometem construir pontes
mesmo quando não há rios. Pessoas que serão eleitas não pela defesa de
argumentos, mas pela venda eficiente de ilusões. Os homens são todos
parecidos em suas promessas, só diferem nas realizações. O roubar pouco é
culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o
roubar com muito poder, os Alexandres. Todo homem é uma caricatura da época
em que vive; muito poucos são capazes de ter idéias além da época. Muito
poucos têm perfil para serem estadistas.
Há um provérbio japonês que diz: nenhum de nós é tão inteligente quanto
todos nós. O simples fato de eu e você, leitor, ter acesso a um computador e
à internet, credencia-nos a compor a base mais estreita da pirâmide. E, por
conseguinte, impõe-nos uma responsabilidade cívica de promover o debate como
formadores de opinião que somos.
A felicidade baseia-se na eliminação de três fatores principais: doença,
pobreza e conflito. E embora o mundo de hoje praticamente imponha um ideal
de auto-sustentação, através do qual as pessoas são impingidas a cada vez
mais prescindir de seus governos, especialmente nos países subdesenvolvidos,
a regulação estatal será sempre essencial para aplacar o sofrimento dos
pequenos ante as tolices cometidas pelos grandes. Camponeses pobres, reino
pobre. Segurança para alguns, insegurança para todos. Ninguém come
macroeconomia.
Se a igualdade não é possível, que as desigualdades sejam amenizadas. Se a
justiça plena é inatingível, que as injustiças sejam abrandadas. Se as
idéias não são convergentes, que os conflitos sejam arrefecidos. Sendo nosso
povo tão tolerante, que a esperança não lhes seja extirpada.”
Pois bem. Foi com curiosidade, e alegria, que vi após a eleição Lula
proclamar que “a esperança vencera o medo”. E eu, revestido de esperança,
aguardei a virada do ano e os famigerados 100 primeiros dias de governo,
acreditando que algo mudaria.
Porém, 176 dias se passaram. E em nome da Macroeconomia, da credibilidade e
do capital internacional, da gestão responsável das contas públicas e mais
uma série de argumentos, nada mudou. Não pretendo debater Economia, pois
academicamente abdiquei da mesma em favor de outros temas que me são mais
aprazíveis. Compreendo o porquê de muitas ações e medidas tomadas,
justificáveis num primeiro momento, porém não mais agora. A falta de ousadia
mínima, a hesitação subserviente, o medo contumaz, implicarão na retomada do
discurso de “dividir o bolo depois”. Só que até lá, todos terão morrido. De
fome, de desilusão, de desesperança.
Pouco me importa os rótulos. Sou, aliás, contrário ao uso deles. Podem
chamar de Estado Social-Democrata, de Estado Keynesiano, de Estado do
Bem-Estar Social. Chamem como quiserem. Se desejarem uma sugestão,
qualifiquem de Estado Empreendedor. Mas que se faça algo! A iniciativa
privada não tem mais fôlego para, com uma carga tributária superior a 40%,
executar ações que cabem ao Governo. As empresas de grande porte fecharam
400.000 postos de trabalho ao longo dos últimos 10 anos e respondem por
apenas 2,3% da força de trabalho ocupada. São as pequenas e médias empresas
que sustentam este país e que de forma assistencialista procuram conceder
benefícios aos seus funcionários e adotar entidades por uma questão de ética
e responsabilidade social. Alguns dirigentes são maçons, outros rotarianos,
outros contribuem em suas igrejas. Fazem o que o Estado não faz – mas
deveria. Gastam-se bilhões com juros e com uma série de outras contas, mas
não se pode canalizar recursos para incentivar a produção, para fazer a
transposição das águas do São Francisco, para dar oportunidade de trabalho a
essa gente boa que só quer trabalhar.
Não tenho respostas. Pensei que as tivesse. Também não fiz a chuva grossa.
Estou apenas atrás do melhor guarda-chuva. E não apenas para mim...
Tom Coelho, com graduação em Economia pela FEA/USP, Publicidade pela ESPM/SP
e especialização em Marketing pela MMS/SP e em Qualidade de Vida no Trabalho
pela FIA/USP, é empresário, consultor, escritor e palestrante, Diretor da
Infinity Consulting, Diretor do Simb/Abrinq e Membro Executivo do NJE/Fiesp.