Do Ser Humano ao Ter Humano.
O Comportamento do Consumidor e a Teoria do Mosaico
Fluído
Por Fred Tavares
22/01/2010
Segundo a filosofia, o ser pode ser compreendido de
várias maneiras: substância, existência, essência,
ser-em-si, ser-no-mundo, ser de razão. Num sentido
que aparece na filosofia grega, o ser se opõe ao
devir. Japiassú e Marcondes nos oferecem boas pistas
sobre essa reflexão:
É nesse sentido que, na filosofia grega, o devir é
sempre identificado como o não-ser, o não-ser não é
a ausência do ser, o nada, mas aquilo que não é o
ser, aquilo que é mutável e diverso, enquanto que o
ser é imutável e único. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996,
p. 246)
Sorvendo-se dos olhares de Deleuze e Guattari,
busca-se refletir o ser humano e as suas
transformações psicossociais e culturais, através de
uma nova representação: a do “ter humano”. Não como
uma concepção metafísica da natureza-humana, mas,
sobretudo, sob uma perspectiva do devir, ou seja, na
fluidez e mutabilidade do indivíduo como estratégia
de uma virtualidade identitária.
O consumidor contemporâneo pode ser classificado
como “ter humano”. Pois, o desejo de consumir
torna-o uma subjetividade em dobra, inacabada.
Incessantemente, transformando-o em uma identidade
líquida, fluida e virtual. Na cultura do consumo, o
indivíduo passa a ser valorizado e reconhecido mais
por ter do que ser, ou pelo menos, do parecer ter. E
que vai ao encontro da abordagem de cultura
capitalista, “cultura-mercadoria”, “cultura-valor”,
denunciadas por Guattari e Rolnik (2000).
Para dimensionar melhor esse consumidor - mutável,
híbrido e antropofágico -, é fundamental
compreender, em seguida, as dimensões teóricas do
consumo, da psicossociologia e da pós-modernidade
com objetivo de trazer à reflexão essa subjetividade
coletiva identificada como “camaguru”.
O estudo comportamental do consumo está orientado
pelo paradigma do pensamento estruturalista.
Diversos autores (BLACKWELL, et al, 2000;
KARSAKLIAN, 2000; MOWEN, 2003) apontam fundamentos
lógicos ordenados para a investigação do
comportamento do consumidor, através de modelos
teóricos estáticos, de forma sistêmica, por
intermédio de estruturas seqüênciais e lineares, mas
que não prevêem a fluidez do consumidor e o seu
comportamento plural, mutável e, até mesmo, caótico
e esquizofrênico.
Pode-se aqui arriscar que o cenário da
pós-modernidade impede a constituição de um modelo
de comportamento do consumidor que seja capaz de
compreender a plasticidade e a multiplicidade das
subjetividades do consumidor. Visto que a idéia de
um modelo – fixo – vai de encontro ao entendimento a
toda premissa filosófica argumentada nesta pesquisa.
Assim sendo, urge investigar esse comportamento por
intermédio de um viés pós-moderno, que contemple a
noção de um Mosaico fluído com seus diversos
vetores, e cuja base esteja alicerçada na
psicossociologia.
Prosseguindo nas pistas trilhadas por Guattari e
Rolnik, vamos introduzir o conceito de “camaguru”,
na condição de cultura de consumo pós-moderna.
O termo “camaguru” remete a um neologismo. Este é
constituído pela junção de duas palavras: camaleão e
canguru. A propósito do termo, ele assinala a
concepção do consumidor contemporâneo, por meio de
uma rotatividade de gostos e estilos; um indivíduo
descentralizado, que se desconstrói na incoerência
de múltiplos discursos, impulsos inconscientes, no
amorfo do desejo, na primazia do corpo, no fluxo
incessante de signos e na diferença (TAVARES, 2001).
A idéia que se quer descrever é a de um indivíduo
que se metamorfoseia a cada deslocamento, onde
ocorram alterações, tanto nas dimensões psíquicas,
quanto sociais e culturais. Ou seja, a cada mudança
de ambiente / espaço / grupo, a sua subjetividade é
mutabilizada na tensão das relações pulsionais e
coletivas. Pode-se observar essa representação
através das múltiplas identidades do consumidor,
reconfiguradas pelas influências do marketing, da
publicidade, do consumo e dos outros.
A subjetividade do consumidor na pós-modernidade
pode se compreendida através do paradigma das
“identidades prêt-à-porter, como bem descreve
Rolnik, reguladas pelas estratégias do mercado e da
mídia. Esses “kits de subjetividades”, como
identidades flexíveis, são formas de subjetivação do
consumidor – fluídas e heterogêneas, mas homogêneas
ao mesmo tempo – deslocando-se de acordo com a
produção da cultura das marcas e do fetiche
simbólico da “cultura-valor”, que é impregnada pelo
capitalismo mundial integrado, ou rizomático,
segundo Guattari (1981; ROLNIK, 2000).
A condição identitária de homo collectivus mutabilis
ratifica o entendimento da subjetividade do
consumidor na pós-modernidade como uma subjetividade
coletiva. Ou seja, as relações pulsionais e
coletivas produzem um comportamento de consumo que
faz o indivíduo parecer e pertencer ao coletivo, não
de forma exclusiva ou diferente, mas com afinidades
e interesses simbólicos e culturais seja pela idéia
de “cultura-mercadoria” ou pela questão da aceitação
psicossocial. Através do approach de “kits de
subjetividade” o consumidor contemporâneo está em
permanente transformação, adaptando-se e
virtualizando-se, através de um devir de se
autoconsumir. Afinal, na contemporaneidade, ele
torna-se a própria mercadoria.
Portanto, os “camagurus” são a representação
simbólica do “ter humano”, no consumo pós-moderno.
Para tanto, a seguir, vamos aprofundar esse olhar,
através do estudo do seu comportamento de consumo,
através do paradigma do Mosaico fluído.
Como foi apresentado, as teorias do comportamento do
consumidor (MOWEN, 2003; BLACKWELL et al, 2000;
KARSAKLIAN, 2000) trabalham sob a égide de um
sistema com modelos de mensurabilidade padrão.
Todos, sem exceção, se constituem, fundamentalmente,
de forma a compreender e avaliar o consumidor por
intermédio de estruturas lienares, redutoras, sem
levar em conta a mutabilidade e flexibilidade dos
sujeitos e, também, a alta complexidade que os
cerca.
Por isso, é preciso recorrer à teoria das
estranhezas (MALUF, 2002) para lançar as bases do
paradigma do mosaico com o qual se vai refletir o
estudo do comportamento do consumidor na
pós-modernidade. Para tanto, Maluf nos conduz a um
caminho bem profícuo:
A teoria das estranhezas visa, então, sem nenhuma
implicação fisicalista, permitir – como se encontra
na Apresentação – “falar de ciência” e de
complexidades não-físicas, de modo não redutor, nas
áreas das ciências não-físicas, em geral. Por isso,
caos e ordem como isomorfos, ordens e desordens como
as faces, não mutuamente excludentes,
metamorfoseadas, de realidades – mosaico de
isomorfos. (MALUF, 2002, p. 67)
Prosseguindo, no sentido de Maluf, a teoria do
“mosaico de isomorfos” remete a uma condição
reflexiva indispensável na análise do comportamento
do consumidor, ou seja, que os indivíduos são
fluídos e as “causas” do seu comportamento não podem
ser pensadas através de estruturas, sejam elas
complexas ou simplórias. O argumento de Maluf vai ao
encontro do pensamento filosófico praticado por
Deleuze e Guattari (1992) acerca da constituição da
subjetividade do consumidor. Isto é, a sua
complexidade – e ambigüidade – impede a construção
de um modelo capaz de explicar a sua variabilidade /
mutabilidade.
Sendo assim, é imperioso aduzir a base teórica
descrita por Maluf para, em seguida, apresentar o
paradigma de Mosaico fluído.
Existe um modo prático de se descrever o mosaico de
isomorfos, como “uma unidade de alta complexidade,
decorrente tanto da fluidez entre os isomorfos
quanto da propriedade “sujeito-dependência”: é o
grafo conecto com pontos não-reflexivos, i.e.,
não-idênticos a si próprios; portanto, não-fechados,
conforme definição anterior, e ilustrados pela
tetractys (a ser descrita, ao início do próximo
capítulo):
Grafo conecto [por síncope em “conectado”].
Nenhum ponto deste grafo é fechado em si mesmo; e
por isso ele possibilita ilustrar o que se deva
entender, efetivamente, por um mosaico de isomorfos:
E o faz – repetindo-se e detalhando-se - :
i) em sua unidade – os diferentes isomorfos que
conformam sua globalidade, seu todo;
ii) em sua fluidez constitutiva – cada “ponto” se
remete a cada um dos outros, de modo interativo;
iii) na afinidade global que se distribui sobre os
isomorfos – “instantaneamente”, cada “ponto” pode se
“ver” em qualquer outro “ponto”, evidenciando, desse
modo,
iv) a inseparabilidade entre eles – a
impossibilidade de se dividir o mosaico em seus
isomorfos; é como as cada ponto contivesse em si a
globalidade de “todos os outros”; e vice-versa –
“todos os outros” se difundindo sobre cada ponto,
individualmente;
v) finalmente, o processo supradescrito se permite
aplicar sobre todo o grafo, em sua totalidade,
induzindo assim uma ulterior fluidez – como dito,
usando-se as palavras de Borges: “o processo não tem
fim ...”.(MALUF, 2002, pp. 76-77)
Tomando-se como norte a filosofia não-cartesiana de
Maluf, pode-se propor a seguinte orientação:
O estudo do comportamento do consumidor através do
Mosaico fluído.
Vetores de análise: psicossociais; culturais;
econômicos; fisiológicos; cognitivos e ambientais.
Descrição dos vetores:
Psicossociais – A relação dos aspectos psicológicos
e sociais remete às questões amplas ligadas à
interioridade e exterioridade humana, bem como sua
correlação e produção.
Culturais – Aspectos simbólicos, de status e de
representação grupal (família, amigos, escola,
trabalho e organizações diversas).
Econômicos – Poder de compra e/ou de acessibilidade.
Fisiológicos – Tem relação com as necessidades
humanas básicas (fome, sede, segurança etc).
Cognitivos – Aspectos ligados à percepção, ao
conhecimento, aos valores, às expectativas e ao
aprendizado.
Ambientais – São as condições climáticas, temporais,
entre outras, que interferem na escolha dos produtos
por parte do consumidor.
Fonte: Mosaico do comportamento do consumidor,
inspirado em Maluf (2002)
Considerando a fluidez do comportamento do
consumidor, os 6 vetores se intercruzam. Contudo, um
deles, o vetor psicossocial, perpassa os demais pois
relaciona-se aos aspectos pulsionais e sociais.
Nesta análise, tem-se a dinâmica mutacional do
comportamento a questão central, que faz com que os
vetores estejam em permanente movimento,
interconectos, não-cristalizados, tal qual a
subjetividade do consumidor, aberta, móvel e fluída.
Um mesmo indivíduo pode apresentar comportamentos de
consumo distintos com a influência / presença de um
ou mais vetores na hora da escolha de um objeto /
marca para o consumo. Deve-se considerar a
circunstancialidade como ponto de reflexão. Por
outro lado, se analisarmos o comportamento de
consumo de um grupo de pessoas com muitas afinidades
em comum, podemos concluir que as diferenças entre
elas existem. Não há uma relação direta de
causa-efeito ou linearidade processual que leva o
indivíduo ou grupo a escolher um objeto, seja por
uma simples relação de estímulo de sinais ou
mecanismos. Ou seja, as escolhas são motivadas por
inúmeros fatores. O consumidor apresenta uma
subjetividade fluída onde se notam mudanças de
atitudes, percepções e comportamentos,
circunstancialmente, em contraposição à “eficácia”
de um modelo linearizado que seja capaz de
investigá-lo profundamente.
A teoria do mosaico, inspirada em Maluf, é relevante
pois desvela um caminho ainda não pensado no
comportamento do consumidor. Ou, segundo Deleuze e
Guattari (1992), percorrer a “filosofia do fora”.
Os vetores apresentados constituem uma malha que
deve ser avaliada para inferir como o consumidor se
comporta. A fluidez reside tanto na reflexão em si
do comportamental quanto da ampla possibilidade de
dinamizar o mosaico, através da complexa gama de
alternativas gerada pelas condições infinitas de um
devir interminável, como nos faz crer Maluf em sua
teoria das estranhezas.
A análise do comportamento do consumidor a
pós-modernidade, segundo o princípio do Mosaico
fluído, desvela um olhar que se contrapõe às teorias
dominantes e, além disso, permite compreender com
profundidade e amplitude a complexidade do
consumidor e sua subjetividade fluída.
A metamorfose do consumidor pode ser melhor
explicada, através das pistas trilhadas,
principalmente, por Deleuze, Guattari, Bauman e
Maluf, para o desvelamento da mutabilidade e fluidez
do seu comportamento.
O consumidor contemporâneo – homo collectivus
mutabilis – apresenta múltiplos estilos, gostos e
desejos, modificando-se ecosoficamente. Sendo assim,
o estudo do Mosaico fluído, que tem na
psicossociologia a base de sua reflexão, é válido
para interpretar as múltiplas escolhas desse
consumidor pós-moderno, que é uma subjetividade
coletiva (“camaguru”) sempre em transformação,
vestindo-se com máscaras de identificação
(MAFFESOLI, 1996) para se fazer representar, através
de processos inconscientes e sociais ao mesmo tempo,
não escolhendo a marca como objeto, mas sim como
“sujeito” que interage para a (des)construção de sua
própria identidade.
Contudo, os outros vetores descritos (econômicos,
cognitivos, fisiológicos, culturais e ambientais)
devem estar refletidos no âmago da análise, sendo,
portanto, indispensáveis à compreensão e ao estudo
do comportamento do consumidor.
Por outro lado, deve-se registrar o quanto as marcas
comerciais têm importância na condição
comportamental do consumidor, já que estas na
cultura do consumo pós-moderno agenciam as
subjetividades dos consumidores, funcionando como
uma modelagem dos desejos, cercando,
desterritorializando e segmentando utilizando-se de
estratégias psicossociológicas consumistas,
atomizadas pelos interesses mercadológicos, através
de uma perversa estratégia de Biopoder (HARDT;
NEGRI, 2001). E que, por sua vez, ratificam a
concepção de cultura capitalística
(“cultura-mercadoria”), na qual valoriza o conceito
de ter do que ser.
Sorvendo-se da interpretação filosófica em Morin, em
A religação dos saberes. O desafio do século XXI,
para entender o consumo, na pós-modernidade, e as
suas múltiplas conexões e inter-relações, é
peremptório novos princípios organizadores
interparadigmáticos para a produção de um novo
conhecimento; a perspectiva psicossociológica traz
uma ruptura à modernidade, porque desvela um pensar
pós-estruturalista da subjetividade, apontando
reflexões e caminhos da cultura de consumo na
“sociedade de controle globalizada das marcas” nos
dias de hoje, através de um olhar no qual o
sujeito-consumidor é uma subjetividade rizomática,
enredada pelo desejo de se consumir. Essa é a tônica
do “ter humano” na sociedade de consumo pós-moderna.
Referências Bibliográficas:
BLACKWELL, et al. Comportamento do consumidor. Rio
de Janeiro: LTC, 2000. DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,
1992.
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações
políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
________________; ROLNIK, Suely. Micropolítica.
Cartografias do desejo. Petrópolis – RJ: Vozes,
2000.
HARDT M; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record,
2001.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário
básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1996.
KARSAKLIAN, Eliane. Comportamento do consumidor. São
Paulo: Atlas, 2000.
MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências.
Petrópolis-RJ: Vozes, 1996.
MALUF, Ued. Cultura e mosaico. Introdução à teoria
das estranhezas. Rio de Janeiro: Booklink, 2002.
MORIN, Edgard. A religação dos saberes. O desafio do
século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
MOWEN, John. Comportamento do consumidor. São Paulo:
Prentice Hall, 2003.
TAVARES, Fred. O marketing pós-moderno nas
sociedades midiáticas e temporais. Em pauta -
Revista Comum da OHAEC, Rio de Janeiro, vol. 5,
no16: 81-118, 2001.