Psicanálise x Psicoterapía
Por Reinaldo Müller
31/01/2012


Poderíamos dizer que o que caracterizariam a psicanálise e as psicoterapias seria o fato delas procederem através da palavra? Não, apenas. A idéia que a palavra cura não é uma descoberta do mundo "psi" é incontestável. Antes mesmo do desenvolvimento dos estudos da psicologia e da psicanálise, os médicos e os religiosos sabiam muito bem o alívio de uma consulta ou de uma confissão. De um modo ger al, sabemos que as diferentes psicoterapias usam da palavra para desenvolver seu trabalho na realidade psíquica. A questão é saber como operar na realidade psíquica por meio da palavra. O crescente mal estar das pessoas nos dias de hoje, acarretou uma variedade de formas de tratamento que se propõe a dar conta de seus sofrimentos psíquicos.

Assistimos, na atualidade, a um verdadeiro fenômeno de inflação de psicoterapias. Há ofertas de tratamento de todas as ordens possíveis. Algumas delas surgiram da derivação da própria psicanálise; como as terapias breves, terapias de grupos, etc. Todas de "base" psicanalítica propondo serem mais rápidas e dinâmicas, buscando se adequar às céleres exigências da vida atual. Há ainda, aquelas que em nome de um retorno a Freud, usa da hipnose e misturam de uma maneira fabulosa regressão com vidas passadas.

Ora, sabemos que a hipnose faz parte da pré-história da psicanálise e, se foi abandonada por Freud, foi por ele ter esbarrad o, justamente, nas suas limitações. Há os que dizem fazer psicoterapia de base analítica para justificar o mero exercício técnico de alguns dispositivos da psicanálise sem se interrogar para que sirvam e quais são seus efeitos como: interpretar sonhos, contrato e uso do divã. Sabemos que não se faz análise só porque se está deitado.

O que constatamos com essas aplicações, que acabam tendo como referência alguma técnica da psicanálise, sem necessariamente obedecer ao rigor de seu método? Deparamo-nos com um abuso do poder da linguagem quando ela é utilizada com a boa intenção de ditar o melhor para aquele que sofre e busca ajuda. Estamos aí mergulhados na sugestão. Diante das ofertas atuais de psicoterapias, surgiram também aquelas que prescindiram até do campo da palavra. É o caso das terapias corporais com o objetivo de intervir nos sintomas psíquicos e somáticos diretamente no corpo, acreditando assim, superar o trabalho tradicional que acaba impondo frustrações por ser limitado pelas palavras. Temos então: Bioenergética, relaxamentos, práticas sexuais, etc. Sem contar com as terapias virtuais pela internet, abstendo do encontro real da dupla. Essas terapias costumam acusar a psicanálise de ser uma técnica falha por ignorar o corpo na tentativa de ajudar o paciente a superar seus conflitos emocionais.

O fato é que Freud iniciou a psicanálise com as histéricas impregnadas de sintomas corporais, só que ele percebeu e reconheceu que existia um discurso que sustentava tais sintomas. Segundo Nicéas (1997) -- "Ao corpo de um ser de linguagem, a gente não acede diretamente, manipulando-o" (pg.22) -- Vamos caracterizar o princípio das psicoterapias em geral para depois traçarmos sua diferença com relação à psicanálise. A chave de qualquer psicoterapia é a incidência da palavra do terapeuta para fazer desaparecer os sintomas (Laplanche-1985). O terapeuta no lugar daquele que sabe, diz o que deve ser melhor para aquele sujeito que sofre. Pretende-se restaurar as funções do eu, torná-lo autônomo e maduro. Mas aí há um paradoxo. Isso é feito sob as bases do olhar de um "mestre" que trabalha em função de um modelo ideal de bem estar. Teremos no final de um processo assim o assujeitamento do paciente pela via da identificação com o terapeuta. E a psicanálise como se constitui?

A possibilidade de haver análise se baseia no fato de que há uma recusa por parte do analista em utilizar o poder da identificação. Bem é verdade que onde há demanda de tratamento, há transferência de saber. O analista sempre é chamado a ocupar esse lugar de saber, de mestre. Mas o que especifica o desejo do analista, seu lugar na clínica, é um desejo que vai além e é mais forte que o desejo de ser mestre. Se diante da demanda de alguém que quer se tratar, o analista responde sabendo o que o sujeito é, do que ele precisa e o que é melhor para ele; estamos no caminho da psicoterapia. Mas se por outro lado, através de sua escuta faz o sujeito ouvir algo como: eu não sei e é por isso que é preciso que você fale... Estamos no caminho da psicanálise.

Freud sempre alertou os psicanalistas contra o furor do desejo de curar. Isso no sentido de não se prender a nenhuma resposta prévia. Se o psicanalista recebe o paciente e acolhe seu pedido de análise é porque ele supõe que haja resposta, o que é diferente dele saber a resposta. É inexato dizer que o psicanalista nada promete, pois há implícito no seu acolhimento, um suposto tratar; por isso Lacan diz que o analista ocupa o lugar do Sujeito Suposto Saber. Para a psicoterapia, o sintoma é um fato que se pode descrevê-lo, classificá-lo e eliminá-lo. Para a psicanálise, o sintoma é um efeito para o qual é preciso encontrar uma causa.

Tomemos como exemplo um texto de Freud, situado no livro Psicopatologia da Vida Cotidiana. Embora não se trate de um exemplo de sessão clássica, serve bem para demonstrar como Freud se colocava diante de uma demanda, o t rabalho que ele propõe e seu desejo de analista. A situação era a seguinte: Freud em férias, viajando de trem e conversando com um rapaz sentado ao seu lado. Tratava-se de um jovem culto, interessado nas obras de Freud e conhecedor de alguns de seus livros. Este jovem era judeu assim como Freud. Durante a conversa, o jovem se lamentava pelo fato de ser judeu, vendo seu futuro condenado ao fracasso, se sentindo injustiçado e marginalizado em função de sua origem.

A certa altura da conversa cita uma frase em latim: "Exoriare (ali quis) nostris ex ossibus ultor", se esquecendo da palavra "ali quis". Esta frase significa algo como: deixe que alguém surja de meus ossos como vingador. Trata-se de um verso de Virgílio em "Eneida", que expressa seu desejo de vingança pelo amante ingrato que cumpre o mandato de Deus: o destino de ser o fundador do novo império em troca de abandonar a mulher que por amor o havia exilado. Assim que o rapaz se dá conta do esquecimento, pede a Fre ud que complete a frase com a palavra que falta. Certamente o esquecimento daquela palavra deve ter lhe causado um incômodo. Então, ele pede a Freud que o complete naquilo que se apresentou como falha, um enigma a ser decifrado. Freud imediatamente diz a palavra que faltava em meio a um riso do tipo "foi pego". O jovem comenta sobre a brincadeira, fica desconcertado com o riso de Freud, sem entender muito bem, mas, acaba desafiando-o dizendo que já que ele sustentava que esses pequenos atos falhos não são indeterminados, que tem uma razão de ser, então que dissesse do que se tratava.

O jovem desafia Freud a verificar através dos seus escritos qual o sentido de tal esquecimento. O que ele pede a Freud? Resposta: que demonstre a verdade que ele sustenta através dos seus textos, ou seja, que ele saiba. Trata-se de demonstrar ao outro uma verdade que ele já possui (a priori). Se Freud tivesse aceitado esse desafio como foi proposto, estaria no caminho da psicoterapia, mas ele propõe outro caminho: o da análise. Isidoro Vegh (1984) trabalha esse texto de uma forma interessante, comparando esse desafio com duas modalidades de jogos: O jogo da competição, onde o jogador para ganhar tem que impor ao outro suas habilidades, provando ser o melhor; e o jogo do azar, onde as habilidades dos jogadores ficam fora do jogo. Freud não vai pelo caminho da competição. Se tivesse ido por esse caminho, iria argumentar o ocorrido através do que escreveu em seu livro, defender sua coerência teórica. Iria exibir suas habilidades para ganhar o jogo pela via do convencimento. Ele faz diferente, diz ao rapaz que se ele quisesse alcançar a verdade que propõe, ele precisaria cumprir com uma única condição: Dizer tudo o que pensava sem omissão.

O que significa isso? Regra fundamental da psicanálise. Dizer ao outro para falar tudo que lhe ocorre, é a frase inaugural de qualquer análise. Significa que a partir daquele momento tudo que for falado, tem uma importâ ncia a ser descoberta. Freud decide abrir mão da possibilidade de ganhar o jogo convencendo-o. Ele se deixa perder. Não assume o lugar do saber. Ele propõe outro jogo, outro caminho. Ele convida o sujeito a jogar o jogo do azar. Decidir por esse caminho quando se trabalha com os pacientes, não se trata simplesmente de uma estratégia técnica qualquer, mas na reinvenção permanente do ato inaugural de Freud de promover uma clínica em que a verdade não está previamente estabelecida.

Freud responde a demanda, o desafio, por um ato que coloca o sujeito diante de um trabalho onde cabe a ele próprio buscar as vias da produção do saber inconsciente. Cedendo a palavra ao sujeito permite-se uma virada fundamental no modo de conceber o que se passa com ele. Diferente das psicoterapias onde se tenta fazer calar o sintoma. Entrar na via da associação livre é dar entrada a uma dimensão na qual o dizer estará além de sua intenção; o efeito de sentido que brota nas palavras estará tam bém além de todo controle consciente. O saber virá de outro lugar. Voltemos à história... O jovem, a pedido de Freud, começa a associar. Decompõe a palavra aliquis: a liquis, reliquien, liquidação, líquidos, fluidos... Relíquias... Fazem recordá-lo a relíquia de Simão de Trento, canonizado, assassinado pelos judeus ainda menino. Segundo o cristianismo, na páscoa, os judeus costumavam matar cristãos para usar seu sangue em cerimônias. Lembra de Santo Agostinho, outros santos, até chegar a São Genaro, recorda de seu milagre que diz que numa igreja de Nápoles se conserva numa ampola de cristal o sangue de S. Genaro. Este sangue se liquefazia milagrosamente todos os anos em um determinado dia festivo. O povo esperava ansioso por esse dia e se caso atrasasse, seria prenúncio de algo ruim, de alguma desgraça.

Após se deter um pouco em suas associações, o rapaz comenta que espera ansioso pela notícia de uma mulher. Freud nesse momento o interrompe e completa a frase dizendo que a notícia que esperava dizia respeito à menstruação da mulher. O rapaz surpreso, pergunta a Freud como ele havia adivinhado. Freud responde que não tinha sido difícil, pois ele mesmo preparou o caminho quando falou dos santos, da liquefação do sangue em dia determinado; a inquietude do povo quando isso não acontecia. Diz que o rapaz havia transformado o milagre de S. Genaro em um símbolo do período menstrual da mulher. Segundo Isidoro Vegh, "se o analista suspende seu dizer e deixa que o outro fale, fala o Outro... Ainda que pela boca do analista". Se Freud chegou a esse ponto foi pela associação do jovem e por sua especial modalidade de escuta. Através da associação livre a verdade pode emergir. A verdade é esse efeito que se produz na manifestação de algo que escapa entre as palavras.

O jovem comenta que não tinha se dado conta do significado de seu esquecimento antes de começar a associar. Quando se trata do inconsciente, trata-se de algo que se produz em ato, no ato de dizer e só depois (après-coup) se alcançará o saber. O inconsciente não se encontra em nenhuma profundeza, mas joga na superfície do discurso. Freud não perdeu seu tempo tentando convencer o jovem de nada, mas algo da convicção se instalou ali. Na fala de Freud, foi algo do próprio sujeito que se retornou desde o Outro, da outra cena. A partir da interpretação de Freud, o jovem confessou que realmente esperava a notícia de sua namorada, pois sua menstruação estava atrasada e isso o preocupava bastante a ponto de querer esquecer. A verdade de um ato interpretativo será constatada pelo discurso que prossegue.O rapaz ainda perguntou a Freud se não tratava de uma mera causalidade. Freud responde que
causalidade como esta se produz sempre que há associação livre.

A psicanálise descoberta por Freud, sua experiência clínica e seus escritos nos servem de referência constante no exercício desta profissão. Por se constituir como um saber inacabado, a psicanálise de rivou diversas leituras a partir do que Freud nos legou. As diferentes escolas estão aí para testemunhar isto. Mas não podemos esquecer que o que Freud nos ensina em sua experiência é a necessidade de percorrer os caminhos da singularidade com o paciente. Não dá para simplesmente copiar Freud ou qualquer outro teórico. Faz-se necessário reinventar a psicanálise na experiência particular de cada paciente, de usar os teóricos como referência, mas aprender incansavelmente com o paciente.

Mas como se tornar psicanalista? Como se aprende esse ofício? O que passa com alguém para que a psicanálise em sua vida seja da ordem de um mais além que a simples escolha de uma profissão? Ocupar o lugar de analista coloca em jogo as motivações mais íntimas de cada um. Ser psicanalista implica, entre outras coisas, navegar de um modo particular nas águas do saber. Implica o desejo de saber sobre seu desejo e na oferenda de saber sobre o desejo do Outro. Não há outra maneira de responder a esse impasse se não for pela sua própria análise. Freud por diversas vezes, no decorrer de sua obra, afirmou essa condição de modo imperativo. Quanto ao pré-requisito da análise pessoal para o exercício da psicanálise, não há sequer controvérsias nas diferentes escolas de formação; embora haja diferenças na ordem de colocar as coisas. A análise pessoal é o eixo que sustenta a formação. É o espaço, o lugar e o tempo em que a demanda de ser analista é pensada e questionada através da interpretação e da transferência.

A análise será didática se o seu resultado for um analista. A análise pessoal, o estudo teórico e a supervisão constituirão o tripé da formação de um analista. Cesarotto (1989) acrescenta mais dois elementos: a autorização e o reconhecimento. Lacan propõe algo mais quando diz que o analista só se autoriza por si mesmo. Ele deixa claro porque a autorização não pode ser dada antecipadamente pela demanda de análise didática, pois ela aparecerá ou não, no fi nal da análise. Mais uma vez, só depois.

O último elemento da formação é o reconhecimento. Ser reconhecido como analista depende de alguém lhe confirmar essa condição no real, através da demanda de análise. No final, acaba sendo o paciente aquele que lança a última palavra ao confiar em alguém para ser seu analista.

Reinaldo Müller > "Reizinho"
Sobre o Autor

O prof. Reinaldo Müller é Consultor de Marketing e Vendas - Instrutor de Vendas - Especialista em Gerência de Vendas pela ADVB-SP - Multiplicador de ENDOMARKETING (Planeta Marketing/SP).
Reinaldo Müller é um renomado intelectual que escreve contos, poemas, prosas e crônicas. Artigos, ensaios, teorias, críticas literárias. Escritor, articulista, cronista, contista, produtor de "conteúdo" para SITES.
Escreve sobre Filosofia - Antropologia - Marketing - Gestão Empresarial. Psicanálise - Psicologia - Psicopatologia (criou a célebre trilogia "Caminhos da Psicopatologia" premiada no meio acadêmico).
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